domingo, 4 de novembro de 2012
Peça de Joël Pommerat une Renata Sorrah e a Cia. Brasileira de Teatro
Refletores ganham carga e
recortam uma silhueta ao fundo do
palco. O verde-musgo surge no breu,
e Renata Sorrah levanta-se, encosta
na parede e desata a falar:
"Finalmente eu vou poder me olhar no
espelho. Todas as manhãs eu vou
encontrar forças para ter finalmente o
controle sobre a minha vida. Esta
criança vai me dar forças. Eu vou
mostrar aos outros quem eu sou. (...)
Meu filho vai ter orgulho de ser meu
filho."
Uma mulher. Uma criança. Uma
mulher grávida de uma criança. Uma
criança que virá à luz para lhe dar
força, mudar sua vida e alterar a
percepção que os outros têm de si.
É isso que se pode imaginar a partir
do que é dito. Há uma realidade em
cena - mas não uma verdade. Afinal,
não sabemos quem é essa mulher,
qual o seu nome, de onde ela vem, de
quantos meses ela está grávida... - por
acaso ela está grávida? Nada indica. O
que temos, então, é uma situação
reconhecível, cotidiana, próxima do
real, mas que não podemos
determinar se é ou não verdadeira. E
é justamente esse o objetivo de quem
a escreveu:
"Com meios que são artifícios,
procuro o real, não a verdade", diz o
autor e diretor francês Joël Pommerat
em trecho do documentário "Teatro
em presença". Reconhecido na França,
ele é o autor de "Esta criança", que
estreia hoje, às 19h, no Centro
Cultural Banco do Brasil (CCBB). "Só a
realidade me interessa", diz
Pommerat.
Mas uma realidade viva e instável,
sugerida, porém impossível de ser
comprovada. E é neste misto de
identificação e estranheza que se
desenrolam não apenas a primeira
cena da peça, mas todas as dez que
compõem "Esta criança", que ganha
direção de Marcio Abreu e concepção
da Companhia Brasileira de Teatro.
Ariane mnouchkine sugeriu texto
Primeiro texto de Pommerat a ser
encenado no país, a peça é
estruturada a partir de uma
engenhosa sucessão de situações de
intimidade compartilhada entre
familiares. Em cena, Renata Sorrah
contracena com os atores Ranieri
Gonzalez, Edson Rocha e Giovana
Soar, revezando-se entre mães e pais,
filhos, vizinhos, amigos, em suma,
pessoas com alguma familiaridade.
Juntos, interagem em cenas que
expressam pontos-limite na
convivência.
- São momentos de intimidade e de
interiorização tão extremos que,
talvez, essas situações estejam apenas
na cabeça dessas personagens. Talvez
não tenham ocorrido, podem ser
apenas imaginadas por alguém que,
de fato, nunca diria ou viveria isso -
diz Abreu. - E é por isso que essa peça
não é realista. A hipótese de que
aquilo que vemos em cena seja
apenas a representação de uma
vontade do personagem desloca a
peça do realismo.
Mas não só. "Esta criança" não é uma
peça realista porque em cada uma das
dez cenas não há um "antes" e um
"depois", não há o encadeamento
lógico e cronológico de
acontecimentos que levam o
espectador a entender o que se deu
até determinado ponto. Mostra-se
simplesmente o ponto, o ápice, um
momento-chave.
- Não há a curva dramática do
realismo - diz Abreu. - Não contamos
uma história prévia que leva a tal
situação. Simplesmente a situação
está dada. Mostramos o clímax.
Renata prossegue:
- Cada cena é um momento de
tensão. Não há uma elaboração
psicológica ou consciente do que está
sendo dito. Se as palavras são bem
ditas não é preciso explicar o que se
diz.
E é por isso que "Esta criança" não
"trata" de relações familiares. Não há
uma reflexão sequer sobre o tema.
Há, em vez disso, um campo de troca
de forças, em que as disputas por
espaço, afeto, cumplicidade e
reconhecimento não são elaboradas
mentalmente ou verbalizadas, mas
reveladas através da ação ou da
inércia, da palavra ou do silêncio dos
atores - a reflexão fica por conta do
espectador.
Assim, nesses dez instantes críticos e
intensos, vemos um pai e uma filha de
5 anos que não se entendem; uma
assistente social que tenta em vão
mediar a volátil relação entre um pai e
um adolescente rebelde; uma mãe
perversa que não se conforma com a
falta de vaidade da filha; uma jovem
que decide doar sua criança a um
casal vizinho; ou duas mulheres que
chegam a um departamento policial
para reconhecer o corpo de um
adolescente morto.
- Foi por causa dessa cena que a
Ariane (Mnouchkine) disse que eu
deveria montar esse texto - diz Renata,
referindo-se à fundadora do Théâtre
du Soleil. - Mas, além dessa cena,
essas crianças e esses adultos nos
fazem ver todas as crianças e adultos
que estão dentro da gente.
Há dois anos, quando Renata
procurava o que montar, Ariane não
teve dúvidas ao indicar Joël Pommerat
e o texto em questão:
- São mulheres de periferia que
chegam ao IML para reconhecer
corpos que podem ser de seus filhos,
e a Ariane disse: "Vocês sabem o que
é isso, vão reconhecer isso." A cena é
forte.
Na mesma época, Abreu também
circulava por Paris e deparava com
Pommerat no palco do Bouffes du
Nord. Na volta, ao montar "Vida" no
Rio e ter Renata na plateia, a parceria
ficou mais próxima. Agora, uma das
maiores atrizes do país se integra a
um grupo em plena ascensão. E a
familiaridade entre eles já está
garantida para além das cenas de
"Esta criança".
- Foi uma coincidência e por isso um
encontro - diz Renata. - Passamos dois
anos nos conhecendo, criamos uma
relação orgânica. Tudo o que um ator
busca é voltar à sensação de grupo,
algo que nos faz lembrar o começo da
carreira. Há tempos não me sinto tão
feliz.
E a felicidade deve continuar em 2013,
quando eles planejam encenar juntos
"Krum", do dramaturgo israelense
Hanoch Levin.
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